José & Pilar e o sentido da vida

Em 2004, li meu primeiro livro de José Saramago (“Ensaio sobre a Cegueira”). O livro mudou minha vida. Desde então, li outros de seus livros e minha admiração pelo homem e pela obra só fez crescer. Seus efeitos sobre minha vida também. Quando já acreditava que não podia adimirá-lo mais,  assisti ao filme “José & Pilar”. É uma sublime reflexão sobre a vida e morte. Gostaria de compartilhar com vocês minhas impressões sobre o filme.

O documentário retrata trechos da vida do casal, José Saramago (1922-2010), prêmio Nobel de Literatura (1998) e sua esposa, a jornalista espanhola Pilar del Rio. O filme é rico em mensagens, tanto através de palavras ditas, mas,a cima de tudo, através de atos. Atos que me remetem ao sentido da vida e ao seu valor.

O filme se passa entre 2006 & 2007. Mostra a rotina de trabalho e momentos da vida privada do casal. Aqui vai alguns recortes que mais me chamaram a atenção:

  • Saramago decidiu se tornar escritor aos 60 anos. Dezesseis anos depois, ganhou o prêmio Nobel.
  • Dos seus 16 romances, seis foram escritos após conquistar o Nobel. Saramago publicou seu ultimo livro em 2009 (“Caim”) e morreu no ano seguinte. O ritmo de trabalho de Saramago e sua esposa, fiel companheira, tradutora e co-empreendedora, foi intenso. Entre inúmeras viagens internacionais, o  autor escrevia livros e o casal se dedicava a sua fundação. Saramago, com seus 84 anos, disse: “há 20 anos não tiro férias”.
  • Em 2007, Saramago quase morre por causa de uma virose. Ficou meses no hospital. Quando saiu, terminou seu penúltimo romance (“A Viagem do Elefante”). No lançamento mundial, em São Paulo, disse: “me perguntaram o que eu queria mais após ter ganho o Nobel. Respondi: tempo. Tempo e vida. Tempo e vida para trabalhar. Há tanto o que fazer.”
  • O filme também retrata a simplicidade de sua vida. Na cena inicial, Saramago estava jogando “paciência” em seu computador. Com humildade, explica que é para espantar o Alzheimer. Se encanta com os efeitos especiais do software quando o jogo acaba e produz uma cachoeira de cartas.
  • O filme retrata também a relação de cumplicidade, companheirismo e amor entre José e Pilar. Em Portugal há um ditado: “da Espanha, nem bons ventos, nem bons casamentos”. Esse ditado não podia estar mais errado no caso de José & Pilar.
  • Seus livros tem uma certa amargura, uma revolta ácida contra o estado da humanidade, suas crenças, sua acomodação. São livros perturbadores, que convocam o leitor à uma reflexão ativa. Em meio a temas tão perturbadores, há histórias de amor. História de amor poderosas, belas, mas muito sutis, talvez incompreensíveis ao paradigma romanesco que vivemos. Nas dedicatórias de seus livros, Saramago revela seu amor por Pilar. Em “As Intermitências da Morte”, lê-se: “A Pilar, minha casa”. Em “As Pequenas Memórias”, lê-se: “A Pilar, que ainda não havia nascido, e tanto tardou a chegar”. “Ensaio sobre a Lucidez”: “A Pilar, os dias todos”. “Don Giovani”: “A Pilar, meu pilar”. “O Homem Duplicado”: “A Pilar, até o último instante”. Em “Ensaio sobre a Cegueira” outra dedicatória a Pilar e a sua filha. “A Caverna”, “Todos os Nomes”, “Cadernos de Lanzarote” e “O Evangelho segundo Jesus Cristo”: “A Pilar”.
  • No filme, José conta que um dia Pilar lhe perguntou “o que queres de mim”. Imediatamente, respondeu: “continua-me”… Ela aceitou.
  • A vila de Aziganha, sua cidade natal, deu o nome de José Saramago a uma rua. Anos depois, deram o nome de Pilar del Rio a outra rua, que cruza com a “José Saramago”. Diz-se que os casais de namorados vão à esquina destas duas ruas se beijar. Que bela homenagem José & Pilar conquistaram.

Mas, não foram só homenagens que  Saramago e sua esposa receberam. Críticas na mídia (em particular, em Portugal), da Igreja (que o excomungou), em cartas ofensivas de leitores incomodados com suas reflexões, com sua convocação. E ao que Saramago (e Pilar) nos convoca? A refletir sobre nossas verdades individuais e coletivas. Nossas crenças, valores, cultura, gostos, atos e nosso egoísmo. Saramago nos convoca ao trabalho. Ao trabalho para um mundo melhor, com muita responsabilidade. Nos convoca a enxergar nossa própria cegueira. Um exemplo? No filme, José pergunta: “quem inventou o pecado? A partir do momento que as pessoas acreditam no pecado, sentem culpa. E ao sentirem culpa, as pessoas se submetem àqueles que inventaram o pecado”.

Ao meu ver, Saramago viveu uma vida de amor intenso. Amor à Pilar, aos seus amigos e filha, à língua portuguesa, à humanidade. Em uma entrevista que não esta no filme, um repórter  lhe pergunta sobre a emoção de ganhar o Nobel: “sim, ganhei o maior prêmio de literatura do mundo. E o quê?”

É com emoção que termino este post. Com uma pergunta também: o que mais vale desejar além de viver uma vida plena?

Um abraço,

Eduardo Luzio

Sobre Eduardo Luzio

Economista pela USP (88) e PhD pela PhD University of Illinois (93). Consultor em finanças corporativas e estratégia. Professor de finanças na FEA-USP, FGV -SP e Insper.

3 Respostas para “José & Pilar e o sentido da vida”

  1. Muito legal!!! Parabéns pelo texto!
    Bjs,
    Bia

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  2. Olá Eduardo, Ótimo texto ! Me emocionei muito com o filme e assim como você fui anotando algumas frases e passagens. Então complemento teu post com uma muito bonita:
    ” Sentir como uma perda irreparável o acabar de cada dia. Provavelmente é isto a velhice.”

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